quarta-feira, 3 de maio de 2017

Diz-me teus heróis e te direi quem és

Há quem acredite que o futebol se resolve em campo. Que não há espaço para ele em outros setores da sociedade. Que engano! O esporte que rege a vida de milhões de brasileiros, entre jovens e adultos, comumente é um instrumento político importante e perigoso.

Não há como negar que vivemos em uma cultura do ódio, com esse sentimento se firmando e reafirmando cada dia mais na nossa sociedade. Seja o ódio político, o ódio estrutural, o ódio social e outras tantas formas de diminuir as minorias que em números compõem majoritariamente o nosso país.

Aí entra o nosso personagem. Felipe Melo. Negro. Jogador de futebol. Vítima de racismo. De origem humilde. Cristão. Polêmico. Raivoso. Desprezado pelos brasileiros após o fracasso na Copa. Esquecido. Que retornou. Que repentina e inexplicavelmente virou ídolo.

Estou há alguns dias pensando sobre Felipe Melo. O quanto me incomoda Felipe Melo. O quanto me assusta Felipe Melo. E o quanto é perigoso Felipe Melo se declarar eleitor de Jair Bolsonaro.

 Foto: Agência Brasil

De volta ao futebol nacional pelo Palmeiras, o atleta causa polêmicas entre as quatro linhas e fora delas. Suas declarações são geralmente relacionadas ao discurso comum do ódio: “vou dar porrada”, “se tiver que dar tapa na cara”, além de comentários machistas desde a época em que jogou na seleção brasileira. O temperamento do meio-campista já era conhecido por quem acompanha futebol, mas ultimamente ele tem deixado claro seu posicionamento político. Em uma ocasião se declarou favorável aos militares. Após a greve geral chamou de vagabundo as “pessoas que querem tumultuar o nosso país”. Por fim, declarou apoio a Jair Bolsonaro.

Cada um tem direito ao seu posicionamento pessoal, independente da profissão, cor ou orientação sexual. Mas qual o perigo de um novo ídolo de um time tão importante declarar apoio a um homem que brada abertamente contra gays, mulheres, negros, indígenas e qualquer outro tipo de minoria? Bolsonaro é a representação real do ódio na sociedade. Bolsonaro é a representação da intolerância, do machismo, da homofobia, da transfobia. Apoiar Bolsonaro é apoiar o ódio, é apoiar a luta contra os direitos dos que podem menos.

Os discursos de Bolsonaro e Felipe Melo são alinhados, andam juntos, lado a lado. É o discurso do ódio, da raiva, de resolver na briga, de não pensar no outro. É o discurso da intolerância, do clichê, do lugar comum. Da falta de amor, da falta de olhar pro lado, da ausência de empatia.

Mas sabe aquela história do oprimido que quer se tornar opressor? Felipe Melo entende que ele é um negro apoiando um homem que disse que “negros quilombolas não servem pra nada, nem para procriar”? Felipe Melo entende que ele é um cristão que apoia um homem que “seria incapaz de amar um filho homossexual”? Felipe Melo entende que veio de origem pobre e está ao lado de um sujeito que afirma que “parlamentar não deve andar de ônibus”?

O futebol muitas vezes cega. Ganhar meio milhão de reais por mês cega. Ter morado em vários países e falar várias línguas cega. Viver rodeado de gente influente, rica e poderosa cega. Mas a realidade continua ali. Escancarada, sem vendas nos olhos. Enquanto o ídolo apoia um sujeito que clama pelo que há de pior na sociedade, o fã ocupa o lado oposto. Vive na pele o que há de pior. Tem seus poucos direitos diminuídos. Tem sua liberdade cerceada. Tem sua dignidade colocada à prova, dia a dia.

O que se resolve em campo? O que vai para fora dele? A construção de um ídolo é algo que vai muito além do gramado e que rege fortemente a vida do torcedor. É possível desconstruir os valores em detrimento de uma paixão? É possível ver a postura do jogador em campo e não compará-la com a postura fora de campo? É possível separar o atleta da pessoa? É possível separar futebol e política? Para mim todas as respostas são “não”.

Por fim, deixo uma importante pergunta até então sem resposta: é necessário e possível escolher um lado?

*Depois de muitos anos voltei a escrever sobre futebol. Até tentei ficar longe dele, mas fui puxada de volta porque tem tanta coisa dando errado que ficou impossível não comentar! ;)

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